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21/11/12
VENERÁVEL IRMÃ MARIA DE JESUS ÁGREDA




 

SANTA MARIA DE JESUS DE ÁGREDA

 

Existem algumas versões notadamente controversas a respeito da obra “Mística Cidade de Deus”, de autoria da Ven. Irmã Maria de Jesus Ágreda e também alguns contrastes envolvendo sua biografia. O artigo abaixo transcrito é bem detalhado, necessariamente extenso, obtido  na Cúria Provincial dos Franciscanos – Valença/Espanha, junto ao diretório da Enciclopédia Franciscana, onde constam detalhes da vida e da obra de Irmã Maria  e de autoria do Frei Celestino Solaguren, Ofm. Em contrapartida, encontramos também junto ao site do Vaticano indicação da “Mística Cidade de Deus”,que serviu de referencial para os estudos de mariologia franciscana da Pontifícia Academia Mariana Internacional, conforme  relação de atividades do ano acadêmico 2002-2003

  

IRMàMARIA DE JESUS DE ÁGREDA (1602-1665)

por Celestino Solaguren, ofm

 

Ágreda é um vilarejo pertencente à província de Sória, que confina com Aragão e  se encontra da mesma forma muito próxima  ao limite de Navarra. Se encontra, portanto, situada nos confins de três reinos históricos da Espanha, nos assentamentos de Moncayo. Até os últimos reajustes de dioceses pertenceu à de Tarazona que, atualmente, conta 5.000 habitantes.

Na Idade Média conviveram dentro da vila membros das três religiões monoteístas. Ainda encontram-se em Ágreda o que foi bairro muçulmano-judeu, bem como o edifício que serviu de sinagoga.

A Venerável Irmã Maria de Jesus, chamada muito comumente a Madre Ágreda,  é célebre no mundo conhecida com o nome de Ágreda.  Aqui, com efeito,  viveu e morreu, sem jamais ter saído dos limites da vila.

 

INFÂNCIA E JUVENTUDE

 

Francisco Coronel e Catarina de Arana. Esta, nascida também em Ágreda, era oriunda de Vizcaya, como recorda a própria Venerável. Efetivamente, no convento de Ágreda se  conserva todavia o documento de fidalguia dos Arana, de 1540.

O matrimônio de Francisco-Catarina teve onze filhos, porém, sete morreram em idade  recente. Só sobreviveram dois filhos e  duas filhas.  Eis aqui os  nomes dos quatro: Francisco, José, Maria e Jerônima.

Sobre seus pais,  o modo de ser deles, os costumes, etc., a mesma Venerável  deixou um esboço biográfico. Da mãe, diz que era naturalmente mais oficiosa e ativa que o pai.  Ambos extremanente religiosos. A família Coronel-Arana se relacionava muito com os  franciscanos de São Julião;   assim se  chamava o antigo convento franciscano que estava situado nos arredores da vila. A mãe tinha ali seu confessor e  procurava diariamente ouvir a Missa na Igreja do convento. Quase não passava dia sem que os frades franciscanos visitassem a família.

A Venerável confessa que ela, em sua primeira infância, parecia um tanto preguiçosa e inútil e para lhe despertar, sua mãe lhe tratava com dureza. “Verdadeiramente posso dizer que em minha vida lhes vi (os pais) o rosto sereno, até depois de religiosa”.  A explicação que Irmã Maria nos dá deste comportamento seu na primeira infância, vai muito além da que os bons pais podiam alcançar.  Nos diz, com efeito,  que na idade em não pôde precisar, porém, provavelmente coincidindo com o despontar do uso da razão, e sem que recebesse informações ou ensinamentos exteriores, recebeu de Deus informações sobre o mundo, estado pecador do homem, etc, cujos efeitos iriam perdurar por toda a vida.

Como resultado daquela manifestação concebeu um temor que jamais lhe abandonou:  temor de ofender a Deus e  perder a graça.  Ao cessarem as revelações, passiva, caiu como suspensa. Via-se rodeada de perigos, repleta de misérias, não ousava falar com as criaturas, a todas reputava superiores.  O conhecimento próprio lhe aterrava, costumava ir a lugares ocultos. Por tudo isso, os pais lhe julgavam insensata e inútil,  e lhe davam o áspero trato mencionado. “Que iremos fazer desta criatura, que não há de ser para o mundo nem para a religião?”.

A tudo isso se agregaram diversas enfermidades, que aos treze anos de  idade a puseram às portas da morte: “Se fez o preparo para meu enterro”, disse ela.  Porém, todos os  padecimentos os suportava completamente, pela convicção que tinha de ser filha de uma raça pecadora, obrigada a satisfazer a  Deus por seus pecados.  “Maravilhavam-se os médicos de que pudesse levar males tão cruéis, com forças tão debilitadas e sem queixar-se”.

Quando completou os doze anos de idade empenhou-se em  tratar de  ingressar na vida religiosa.  A primeira idéia, foi a de tomar o hábito das Carmelitas Descalças de Tarazona e seus pais  já faziam os preparativos para que isto se consumasse, quando sobreveio uma circunstância  totalmente imprevista,  que havia de mudar o rumo de sua vida.  A mãe da Venerável, Catarina de Arana, teve revelação, confirmada por seu confessor,  Fr.  Juan de Torrecilla,  segundo a qual devia transformar a casa em convento e  ingressar nele como religiosas a  própria mãe com suas duas filhas,  enquanto o pai se ingressaria com os dois filhos na Ordem de São Francisco.  Na realidade os dois filhos varões eram já religiosos na dita Ordem.  Diante disso, Maria deu sua conformidade ao novo plano e  desistiu de ir a Tarazona.  Porém, a  idéia era tão dissonante, que chocou-se com a resistência do pai de família e também com a de um irmão deste, Medel.  A oposição dos circunvizinhos, a princípio,  foi também geral. Diziam que “era agravo do santo matrimônio”.

Assim, transcorreram três anos. Não obstante, pouco a  pouco se  venceram as  oposições e dificuldades;  o pai mudou de parecer e, em 1618,  feitas algumas reformas prévias, a casa de Frederico Coronel se  transformou em um convento de monjas.  Francisco,  a quem seguiu depois seu irmão Medel, ingressou como franciscano na qualidade de irmão leigo no convento de Nalda (Sória).

O tempo que transcorreu até que o projeto se transformou em  realidade,  Irmã Maria o considerou como uma fase de desregramento. Os acaloramentos em  torno ao projeto, as obras, etc,  a  distraíram e  dissiparam sobremaneira sua vida espiritual e até cedeu à tentação da vaidade.

O novo convento havia de ser a Ordem da Imaculada Conceição.  Sem dúvida, o fervor imaculista, que a Espanha conhecia então um de seus melhores momentos,  foi causa desta preferência. Porém entre as Concepcionistas havia dois ramos: uma de calçadas e  outra de descalças.  Mãe e  filhas se decidiram pelo instituto de descalças. Mas como na área da província franciscana de Burgos, à que pertencia a fundação de Ágreda, não havia Concepcionistas descalças, senão só calçadas, se cometeu a anomalia de trazer de Burgos três monjas Concepcionistas das calçadas na qualidade de  fundadoras de um convento que havia de ser o ramo descalço. Por esta razão dirá Irmã Maria que a fundação não teve bom princípio, pois as fundadoras vindas de Burgos tinham que ensinar um modo de vida que elas não haviam professado nem praticado.

Dezesseis anos tinha Irmã Maria quando tomou o hábito, juntamente com sua mãe e irmã.  Prontamente houve novas vocações.  Nesta primeira época, a abadessa, era das vindas de Burgos na qualidade de  fundadoras.

Uma vez vestido o hábito, Irmã Maria reage contra a  dissipação anterior e  se entrega totalmente à vida espiritual.  Feita a profissão em 1620,  começa em sua vida um período de  enfermidades, tentações e extraordinários trabalhos, que será seguido por outro de fenômenos espirituais ressonantes.

 

AS EXTERIORIDADES

 

Quando Irmã Maria tinha dezoito anos, ou seja, no ano seguinte  à sua profissão,  começam a  ocorrer em sua vida certos fenômenos místicos ressonantes, aos que se deram indiscreta publicidade, sem ela querer ou saber. Um dos confessores que teve por este tempo foi o referido Fr.  Juan de Torrecilla.  Dele diz a venerável que era mais bom que cauteloso.  Irmã Maria padecia com freqüência êxtases, arroubos e  raptos, fenômenos de levitação, gravidade, etc e acudia muita gente a vê-la neste estado. As monjas – que então governavam a  comunidade vindas de Burgos-,  longes de impedir, fomentavam a exibição.

“E chegou minha infelicidade – escreve Irmã Maria – a que depois de comungar me colocaram o véu e me viram alguns seculares.  E como isto, de arroubos,  faz no mundo imprudente tanto barulho, estendeu-se e  passou adiante a publicidade; as superioras que haviam, eram amicíssimas destas exterioridades e foram se  empenhando com uns e outros seculares;  por haver concedido a  alguns, não se lhes negavam a outros.

“Deu-me aviso disto um enfermo,  aflito, que veio ao convento me ver, o que para mim foi tão fatigante, minha amargura e dor foram tais, que fiz voto de não receber a Nosso Senhor sem fechar-me na comungatória. Pedi um cadeado e me fechei;  e o podia fazer porque só comungava pelas muitas enfermidades que eu tinha. Outras vezes,  que me tiravam a chave, bebia xarope ou medicamentos para que não me obrigassem a receber Nosso Senhor, julgando melhor carecer deste consolo,  que submeter-me a tão grande imprudência, como mostrar-me a  todos os que concorriam que, só de ouvir o barulho deles,  me desmaiava; repreendiam-me asperamente e me imputavam desobediência e, para obedecer, me rendia”.

Ela mesma, muitos anos mais tarde, quando contava com mais experiência e  conhecimento dos caminhos do Senhor,  se referirá com certas reservas aos sucessos daqueles anos.

Ante as queixas da interessada, interveio o Provincial Fr.  Juan de Villalacre  para pôr fim àquelas exibições. Por ordem do dito provincial ela mesma pediu a Deus que terminassem todas as  exterioridades, tendo Deus a atendido.  Isto ocorreu em 1623.

“O modo que teve de encerrar esta publicidade – diz a Venerável – foi que,  armada de fé e esperança,  fui ao Senhor e prostrada ante seu Ser imutável, lhe disse que não me  havia de levantar até que me concedesse retirar  todas as exterioridades em público e que os benefícios que me  havia de fazer fossem a sós;  e ao prelado, que era o Padre Fr. Juan de Villalacre, Provincial, lhe supliquei que pusesse censuras às religiosas para que, estando recolhida,  não me manifestassem aos seculares. O prelado o fez lindamente e  o Altíssimo desde aquela hora me mudou o caminho e  me pôs em outro, do qual era mister escrever muito para declarar-lhe.  Dilatou-me muito na capacidade de entender as potências e sentidos para que,  com a  grande admiração do muito conhecimento,  não perdesse os sentidos,  e mais conhecia neste estado em um instante que em todos os  sucessos dos três anos”.

A partir desta data, a vida mística da Venerável, ainda que mais elevada, será oculta, sem estas repercussões exteriores.

A novidade do cessar daqueles fenômenos produziu não pequena impressão nas monjas e  deu lugar a vários pareceres. Para muitas,  o término de agora fazia suspeito todos os anteriores.  Ela calava. Só sua mãe natural lhe falou algumas vezes, porque a  via constristada por este motivo.

A estes anos das exterioridades, pertencem também as  supostas viagens da Venerável para evangelizar aos índios do Novo México. Quando muitos anos mais tarde Irmã Maria foi submetida a interrogatório pelos qualificadores da inquisição, a maioria das  perguntas giraram em torno a  essas supostas viagens da monja à América, afirmados em um Memorial que se difundiu muito e do que é autor Fr. Alonso de Benavides,  Custódio do Novo México, que veio a Espanha em 1630 e esteve em Ágreda. Porém,  deste processo,  diremos algo mais adiante.

No mesmo ano de 1623 voltaram a Burgos as primitivas fundadoras e em seu lugar, se  trouxeram de Madri, do convento do Caballero de Gracia, outras três monjas, também na qualidade de  fundadoras.  Estas sim eram das Concepcionistas descalças. Estas segundas fundadoras governaram o convento por quatro anos. Em 1627 pareceu aos superiores religiosos que convinha nomear abadessa a Venerável, e assim não o fizeram, pois que não havia completado os vinte e cinco anos.

Irmã Maria guardou sempre muito boa  recordação das monjas de Cabellero de Gracia por seu trabalho como educadoras da  nova fundação.  Se conservam cartas da Venerável às ditas religiosas. Nelas  se revelam facetas altamente simpáticas de  sua personalidade:  naturalidade, simplicidade, caráter humano e afetuoso, etc.

 

ABADESSA

 

Durante onze anos, ou seja, até que se cumprissem os vinte e cinco anos desde a fundação do convento, foi Irmã Maria abadessa por nomeação dos superiores religiosos. Depois que se concedeu direito de eleição à Comunidde, foi eleita triênio após triênio, até sua morte.  Só uma vez conseguiu a interessada, recorrendo ao Núncio Rospillosi, que não se desse a concessão para reelegê-la novamente, e assim esteve um triênio, de 1652 a 1655, sem ser abadessa.

O governo da Venerável foi mesclado de prudência, suavidade e eficácia e   demasiada brandura.  Esteve trinta e cinco anos à frente da Comunidade.

Também no temporal se  conheceu a  eficácia de  seu governo.  No primeiro ano de seu cargo decidiu edificar novo convento, fora dos muros da vila e próximo ao convento dos franciscanos. Começou com tão poucos meios, que só dispunha de cem reais, que lhe prestou um devoto. A construção demorou sete anos, resultando em formosa igreja e  todas as oficinas necessárias. A mudança das  monjas ao novo convento se  verificou em 1633 e  celebrou-se com grande pompa.  Quando no interrogatório inquisitorial se  insinuou à Venerável que havia violado o voto de clausura com suas  viagens às Índias, esta respondeu com graça que não havia saído da clausura mais que uma só vez e, esta em procissão,  ao trasladar-se do convento velho ao novo.

Quando Irmã Maria entrou para governar,  não chegavam as  rendas a  sustentar doze religiosas.  Na sua morte,  deixou renda fixa para sustentar a  trinta e três.

Em 1652 o convento concepcionista  de Ágreda se converte por sua vez em  convento fundador.  A Venerável cede quatro das suas religiosas para uma nova fundação em Borja (Zaragoza).  Existem cartas da venerável à nova Comunidade,  que foram  publicadas recentemente.

 

OS DIRETORES ESPIRITUAIS

 

Dada a parte importante que os confessores e  diretores espirituais julgaram na vida espiritual da Venerável, parece obrigatória a detenção neste ponto. Irmã Maria foi uma alma possuída durante  toda sua vida de um “excessivo temor”. Temor de errar, de extraviar-se. Por isso se submeteu firmemente à obediência, à direção dos representantes de Deus. “Jamais – dirá ela – me aquietei sem este rumo.” Ao diretor  manifestava toda sua consciência, as graças e  favores do Senhor e nada fazia sem sua aprovação e conselho. No mosteiro de Ágreda se  conservam todavia inéditas as Sabatinas, ou seja, as contas de consciência que cada sábado dava por escrito ao diretor.  Tinha muito impressa na alma a  frase do Senhor no Evangelho:  “Quem a vós ouve, a mim ouve;  quem a vós obedece, a mim obedece”.

Vale dizer que todos seus diretores e confessores, assim como seus superiores eclesiásticos, foram da Ordem Franciscana, pois as religiosas estavam sujeitas à jurisdição dos superiores religiosos da Ordem a que pertenciam ou à que estavam adscritas;  e  a Ordem da concepção,  desde o início, se pôs sob a  Ordem de são Francisco.

Durante o noviciado teve um confessor que a todos os  seus pedidos de permissão para fazer penitências contestava com um “não”.  Irmã Maria ponderava depois o bem que a fez.

Durante o período das  exterioridades teve vários confessores, cujos nomes conhecemos por suas respostas ao interrogatório inquisitorial.  São eles: o já citado Frei Juan de Torrecilla, Frei Juan Bautista de Santa María e Frei Tomás Gonzalo.

Com a intervenção do Provincial Frei Juan de Villalacre para pôr em ordem as  coisas da Venerável, começa um longo período de vinte e  quatro anos em que é dirigida pelo Padre Francisco Andrés de la Torre.  Este Padre a dirigiu, pois,  desde 1623 até 1647, ano em que morreu. Durante seu mandato, Irmã Maria escreveu pela primeira vez a Mística Ciudad;  na ausência eventual deste, a  queimou por indicação de  outro confessor acidental, voltando a refazê-la parcialmente, à morte dele a voltou a  queimar, etc.  Samaniego nos informa que o rei Felipe IV quis nomear Bispo a este Padre, porém, renunciou à idéia por atender melhor a direção da venerável.

Em cartas de Irmã Maria ao Rei há constância de ordens que lhe dava este Padre com respeito a  consultar ao céu sobre certos assuntos,  ou consignar notícias com reflexos sobrenaturais.  Também a Mística Ciudad, como é sabido,  há constantes consultas que fazia a Deus ou à Virgem por ordem do confessor.

Depois da morte deste diretor esteve por algum tempo só, ou seja, sem diretor.  É neste tempo que se queixa ao Rei de  que a Ordem Franciscana não guarda segredo de suas coisas  como deveria.

Foi também agora, neste “interregno” de  diretor, quando foi submetida ao interrogatório inquisitorial.  Na carta ao Rei, alude ao fato e  faz referência aos  sucessos de  sua juventude sobre os  quais versou, principalmente no dito interrogatório:

“Em meu negócio não há novidade maior que a que escrevi a V. M.;  quando me veio aquela visita me achei tão só e  sem conselho, que me pareceu forçoso recorrer ao amparo do Prelado, que é o Padre Manero. O Senhor me  enviou este trabalho quando não há confessor nem religioso nenhum que conheça meu interior, por terem morrido os que se lhe havia comunicado. Por conta do Altíssimo e da Rainha do Céu confio minha defesa;  se querem  que padeça,  gozosíssima abraçarei a cruz.  Pelo que a V. M. amo e estimo, lhe quero declarar que,  só pela bondade de Deus, tenho livre a consciência e vontade nas matérias espirituais, ainda que, não sem temor de ter errado, como mulher ignorante e  por ter começado o caminho da  virtude, assinalando-se a  misericórdia de Deus comigo, sendo ainda menina”.

Por fim,  no mesmo ano de 1650 passa a  lhe dirigir o Padre Andrés de Fuenmayor, que a guiou até a hora da morte.  Deste, diz ela estar contente, porque guarda segredo:

«Meu confessor partiu já para sua jornada;  é mui douto e tem duas vezes o ofício de Provincial, e  o que me consola é que guarda em grande segredo as minhas coisas”.

Sob a  direção deste Padre se  encontrava  Irmã Maria quando, por ordem sua, escreveu a  redação definitiva da Mística Ciudad.  (Cidade Mística).  O Padre Fuenmayor viveu muitos anos em  sua direção, escreveu a  vida dela e deposições testificais,  que existem manuscritas.

 

CORRESPONDÊNCIA EPISTOLAR COM O REI

 

Não há dúvida que um dos episódios mais admiráveis da vida de Irmã Maria é  o de suas  relações com o rei Felipe IV,  com quem manteve correspondência epistolar por espaço de mais de vinte anos (1643-1665).  Desde então, as relações de Irmã Maria com o rei da Espanha não são mais que um capítulo dentre os mais importantes;  no conjunto das  múltiplas relações e da variadíssima e dilatada troca de cartas,   sustentou a Venerável com múltiplos personagens de  seu tempo.  Irmã Maria escreveu cartas a Papas, Reis,  Generais de Ordens religiosas,  Bispos, nobres e a  toda classe de pessoas da Igreja e da sociedade. Ainda dando por desconto que muitas destas corresnpondências se tenham perdido,  não pode-se deixar de admirar ao considerar o volume, a extensão, a qualidade e  variedade de  sua atividade epistolar e literária.  Bem pôde falar Sandoval de “Um mundo em  uma cela”.  Porém, voltemos ao tema de sua correspondência com Felipe IV.

Em julho de  1643 Felipe IV se detém em Ágreda,  a caminho de Zaragoza.  Visita a  Irmã Maria e  lhe propõe sua idéia de  manter correspondência com ela. O Rei lhe escreverá a  meia margem, a fim de que a contestação da monja vá no mesmo papel.  E,  segundo o acordado, dentro de poucos dias lhe escrevia o Rei já de  Zaragoza sua primeira carta.  Assim se iniciou esta célebre correspondência, que não interromperia senão com a morte da Venerável.  A edição de Silvela consta de 614 cartas,  das quais 314 são da monja,  e o resto do Rei.

Que buscava Felipe IV quando bateu às portas daquele mosteiro? Ajuda sobrenatural, sem dúvida, pois que os meios humanos e naturais lhe iam faltando momentaneamente. O panorama da  monarquia espanhola era inquietante:  Catalunha sublevada,  guerras e reveses com França,  Flandres, Itália, Portugal;  falta de meios e  recursos para atender a  tantos “empenhos”…  O Rei acabava de apartar de  si ao onipotente Conde Duque de Olivares, a quem a opinião popular culpava de todos os  desastres.  Porém, só e sem o Conde,  o apático Felipe IV, que podia fazer?  A consciência lhe dizia também que com sua vida desregrada, tinha a Deus ofendido.  Em tamanho aperto pede, pois,  socorro a uma alma santa, confiando que com suas orações,  valimento ante Deus, luzes e  conselhos, lhe ajudará a sair daquele labirinto.

Irmã Maria não defraudou as  esperanças que o rei depositara nela. Com fidelidade e  perseverança exemplar foi contestando as  cartas reais e  desempenhando por este meio um verdadeiro trabalho de reeducação cristã do monarca;  ao mesmo tempo, não deixa de dar-lhe conselhos atinados em  questões de ordem político-militar que o monarca lhe expõe. Assim, por exemplo,  em  um momento em que o Rei se  sentia tentado a  fazer caso omisso dos foros de Aragão, Irmã Maria lhe adverte que não o faça por nada do mundo. Quando o rei quis fazer extensiva a Aragão a jurisdição da Inquisição, Irmã Maria lhe aconselhou adiar este assunto, por ser inoportuno naquele momento;  o essencial então era conseguir a  cooperação aragonesa, para o qual havia que afastar os pontos conflitantes.  Depois de reconquistada Barcelona, a monja lhe aconselha que ponha ali ministros que concordem bem com os reais, etc.  Silvela chegou a  dizer que a monja de Ágreda, com sua clarividência e instinto, salvou a unidade da  Espanha naquela hora verdadeiramente crítica e decisiva.

Na ordem internacional, encorajou o Rei a  fazer as pazes com a França. E, efetivamente,  teve o consolo de  ver logrado este objetivo ao firmar-se a “Paz dos Pirineus”. Irmã Maria tem uma preocupação constante e geral por aconselhar a paz.  Não consegue conceber que, para possuir-se um lugar,  morram tantos homens redimidos por Cristo:  “Por defender coisas terrenas,  praças ou reinos (pouco importando o que tenham uns ou outros) se derrama tanto sangue cristão,  morrem milhares e milhares de  homens, gastam os Reis suas fazendas, tenham aos pobres súditos oprimidos, cheios de tributos …”

A preocupação pelos pobres, ao transmitir ao Rei as queixas,  vexações e  trabalhos destes, é outra constante que se adverte nas cartas.  Inclusive, chega a dizer que o estado eclesiástico muito pouco sente a necessidade da paz, porque a ele  não lhe alcançam as  conseqüências da guerra, que tanto afligem aos pobres.

Segundo parece, mais de uma vez sentiu-se Irmã Maria desencorajada e  tentada em suspender aquelas cartas, sobretudo vendo a pouca emenda do Rei (coisa que a ela não se lhe ocultava, pois estava a par das coisas da Corte); porém lhe sustentou um fogo de ardoroso amor, que ela acreditava infuso, e que lhe impelia a trabalhar por aquela monarquia, cuja causa vinha identificada com a de Deus e a Sua Igreja.

O Rei, por sua parte, quase constantemente repete em  suas cartas o alívio que recebe com a correspondência de Irmã Maria,  o gozo com que toma o trabalho de escrever-lhe,  a dita pelo fato de tê-la conhecido, a pena que sente quando a monja tarda em  contestar, etc.  Sem dúvida, o que confortava e  comovia ao Rei era, sobretudo, ver a  íntima compenetração e o sincero interesse com que aquela alma de Deus se fatigava pelo seu bem e  por causa de sua monarquia.  Vejamos algumas passagens:

“Em todas as  cartas que me escreveis encontro novos motivos de agradecimento, pois reconheço com clareza o amor que me tens e os desejos tão vivos do meu maior bem,  tanto espiritual como temporal.  Isto me encoraja muito em meio aos cuidados em que me encontro;   é grande alívio   saber que se tem alguém que os desejava abrandar e que o procura certamente no caminho seguro, como o da oração”

“Com muita alegria recebi vossa carta, como me  sucede com todas as que me escreveis, e  que na verdade não encobrem o amor que me tens, desejando meus acertos, pois tudo o que me referis nelas o declaras suficientemente. Eu estimo e agradeço muito, vontando a  pedir que continueis esta boa obra que me fazeis, o qual espero me há de valer muito;  e  não descuideis de trabalhar nem desanime em considerá-los  tão humilde instrumento, pois Deus quer mais a estes que aos soberbos”.

Um feito que dilata a finura da alma de Irmã Maria é o absoluto desinteresse com que serviu ao Rei. Queremos dizer que nunca se aproveitou de suas relações com ele para receber vantagens a  seu favor, de seu convento ou de seus familiares.  Ao que parece, o irmão maior da  Venerável, Francisco, quis valer-se da  influência de sua irmã para chegar a ser bispo; inclusive chegou a ter uma audiência com o Rei. Irmã Maria, que não lhe pode fazer desistir de seus intentos, de antemão, avisa ao Rei da visita;  dize-lhe que lhe dê boas palavras de despedida, mas sem levar a sério suas pretensões.

 

O EXAME DA INQUISIÇÃO

 

Nas  páginas anteriores temos aludido várias vezes ao interrogatório inquisitorial a que foi submetida a Venerável. A Inquisição espanhola abriu processo pela primeira vez no assunto da Venerável em 1635.  Porém,  então parece ter limitado-se a  fazer algumas perguntas a  diversas testemunhas e  informantes,  caindo a causa em suspenso durante muitos anos.

Porém, em 1649 se retoma o exame. Ao trinitário Padre Antônio Gonzalo Del Moral se lhe manda ir a Ágreda como qualificador do Santo Ofício e  interrogar a Venerável diante do notário à base de um questionário de oitenta perguntas, a  maioria das  quais se  referem à suas supostas viagens às Índias. Irmã Maria, reconhece que naqueles anos das exterioridades,  como havia ouvido falar da evengelização dos índios, acreditava às vezes ser levada para lá, onde lhes pregava;  porém,  sempre abrigou dúvidas  sobre a  realidade de  tais fatos. Por outro lado, Benavides e  outros Padres respeitáveis deram o fato por incontestável e lhe fizeram firmar o famoso Memorial. Lhe amedrontaram dizendo-lhe “que podia cair na heresia de Pelágio, atribuindo à natureza o que era sobrenatural”.  “Me rendi – disse ela – mais à obediência que à razão”. Nas respostas da Venerável vemos o juízo que muitos anos depois tinha ela formado sobre o período das exterioridades. Ao dizer ela aos confessores  os favores que lhe faziam os anjos, lhe ordenavam por obediência que perguntasse os nomes dos ditos anjos, e disse alguns, etc.

Pelo que do interrogatório se  deduz, todo este fato das viagens às Índias se originou  de  uma carta do Padre Francisco Andrés de la Torre, diretor da Venerável,  ao Arcebispo do México,  dom Francisco Mando de Zúñiga, em que lhe dizia que averiguasse se no Novo México sabiam de uma monja que andava fazendo conversações.  Mais tarde veio dali Frei Alonso de Benavides dizendo que, efetivamente,  havia sido vista, fornecendo detalhes.  Este redigiu um Memorando que foi amplamente difundido. Ao perguntar o qualificador à Irmã Maria porque firmara o Memorando de Benavides, esta argumentou ela que quando o firmou estava turbada,  afirmando o que não sabia, e pensava que ela estava errava e eles certos:  ao ver-se diante de tantos Padres solenes não supôs fazer outra coisa. Acrescentou que os frades e monjas dispuseram o caderno como quiseram, e de sua informação temerosa fizeram pouco caso. Diziam que tinha temores imprudentes e escrupulosos.

Enfim,  acrescentou Irmã Maria,  que sobre a questão de ida às Índias mais de uma vez, pensou fazer uma declaração verdadeira por escrito, vendo quão variavelmente falavam, e em algumas coisas exageravam a verdade; porém,  crendo que o tempo o esqueceria,  tomou o cuidado de queimar os papéis que havia feito.

O qualificador Fr. Antônio Gonzalo del Moral, trinitário,  encerra o expediente fazendo uma declaração sobre o alto conceito que se formou da interrogada, desculpando o assunto de ida às Índias pelas circunstâncias em tudo aquilo que se escreveu.

Cabe perguntar o que moveu a  Inquisição a prosseguir agora em uma causa que, durante muitos anos,  havia permanecido praticamente esquecida. Parece que a ocasião foi a seguinte: o duque de Híjar havia sido processado por conjuração contra o Rei, e durante o processo apresentou, a modo de desencargo, uma carta da Venerável. Também o Padre Monterón, franciscano, havia sido posto na prisão porque em seus sermões falava  de revelações que anunciavam desgraças ao Rei. De fato, no interrogatório,  se perguntou à Venerável sobre suas relações com o duque de Híjar e o Padre Monterón.

 

ÚLTIMA ENFERMIDADE E MORTE

Teve saúde delicada e padeceu de diversos achaques e enfermidades.  Silvela conta das sangrias que menciona em suas cartas, e que somam setenta e uma no espaço de quatorze anos. Em carta de 19 de novembro de  1660 fala ao Rei de que padeceu de grande enfermidade, projetou sangue pela boca, etc. Em 16 de junho de 1661, fala de dores de cabeça que resultam a perda da vista, provocando fadigas mortais, etc.

 A última enfermidade, segundo o biógrafo, foi ocasionada por uma febre e abscesso no peito. Foram onze dias no total, os que teve de permanecer na cama. Em todos eles, serviu de edificação geral às religiosas, às que, por insinuação do confessor, e vendo que choravam amargamente,  falou nestes termos no momento de receber a extrema-unção:

“Irmãs, não façam isso;  olhem que não temos tido outro trabalho e que se devem receber com igualdade de ânimo os que Deus envia;  se Sua Majestade quer que nos apartemos,  cumpra-se sua santíssima vontade. O que eu os rogo é que sirvam ao Senhor, guardando sua santa lei, que sejam perfeitas na observância de sua regra e fiéis esposas de Sua Majestade, e procedam como filhas da Virgem Santíssima, pois sabem o que devemos à nossa Mãe e Prelada. 

Tenham paz e concórdia entre si e amem-se umas às outras.  Guardem seu segredo, afastando-se de criaturas e retirando-se do mundo:  deixem-no antes que ele as deixe.  Desenganem-se das  coisas desta vida e trabalhem enquanto tem tempo;  não esperem este último episódio,  quando impede o agravamento da enfermidade e prostração da natureza. Cumpram com suas obrigações, que com isso terei eu menos purgatório, de tantos anos de prelada.  Se prodecerem assim receberão do Senhor a bênção, que eu lhes dou”. 

Então, levantando a mão e formando sobre elas o sinal da Cruz, disse:  “A virtude, a virtude, a virtude lhes encomendo”.  Em seguida, foram chegando sucessivamente uma após outra para pedir-lhe em particular sua bênção, e a cada uma deu a amorosa Madre as  advertências e conselhos que em particular lhes convinha, cuja eficácia e acerto maravilhoso, no que a si toca, testifica.

Foi assistida nos últimos momentos pelo Provincial Samaniego e pelo próprio Geral da Ordem, P. Salizanes, que indo de caminho a Santo Domingo da Calçada para presidir o capítulo que tinham de celebrar as províncias de Burgos e Cantabria, se desviou a Ágreda e assim pôde estar presente na morte e exéquias da Venerável.

Morreu esta no dia de Pentecostes, 24 de maio de 1665,  à hora terça. A suas exéquias concorreu numerosa multidão, pois era geralmente estimada. A poucos meses, como se a falta de  sua fiel e  sincera amiga lhe tivesse abatido, morria também Felipe IV.

O Mosteiro da Concepção de Ágreda,  a três séculos destes fatos, manteve viva e  operante a  recordação da Venerável. Dentro de seus muros se conservam religiosamente numerosos objetos relacionados com ela. 

Dentre eles,  os  oito livros da Mística Ciudad,  autógrafos e profusão de outros escritos e documentos. 

O corpo da Venerável, depositado em uma preciosa urna,  e  o da sua mãe, Catarina de Arana. 

A tribuna aonde se retirava.  A cela que habitou, com duas janelas, uma voltada a Moncayo e outra ao Norte. O hábito franciscano que levava por dentro, além do da sua Ordem Concepcionista. Casulas bordadas por ela, etc., etc.

Efetivamente, Irmã Maria foi de reconhecida perícia e habilidade para trabalhos manuais e entendia de panos e telas, como o evidencia na Mística Ciudad ao falar do vestido que com suas mãos fiou e teceu a Virgem para o Menino Jesus. (MCD, P. II, n. 686).

 Irmã Maria, como tantos outros casos relevantes da  espiritualidade cristã, é a realização mais completa, daquela parábola evangélica segundo a  qual da morte brota a vida; da contemplação, à ação;  e a prova de que a vida escondida em Cristo é a mola mais poderosa do verdadeiro amor ao próximo.

Sobre a Mística Ciudad de Dios diz sua autora em sua parte III, cap. 23, n. 791:  «Esta divina História, como em toda ela fica repetido, deixo escrita por obediência de meus prelados e confessores que governam minha alma, assegurando-me por este meio ser vontade de Deus que a escrevesse e que obedecesse à Sua beatíssima Mãe, que por muitos anos me o tem mandado;  e ainda que toda posta à censura e juízo de meus confessores, sem ter palavra que não tenham visto e conferido comigo,  com tudo isso a sujeito de novo a seu melhor sentir e sobretudo a emenda e correção da Santa Igreja Católica Romana, a cuja censura e ensinamento, como filha sua, protesto estar sujeita, para  crer e ter só aquilo que a mesma Santa Igreja nossa Mãe aprovar e crer e para reprovar o que reprovar,  porque nesta obediência quero viver e morrer.

Amém».




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